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Ex-conselheira da EBC defende missão pública da empresa

  • Márcia Detoni
  • 7 de mar. de 2022
  • 8 min de leitura

Por Márcia Detoni


Ameaçada de privatização no governo Bolsonaro, a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) representou até 2016 o projeto mais próximo de uma mídia de serviço público já implantado no país. A lei que a criou em 2008 reuniu em um mesmo comando veículos de comunicação (TVs, rádios e agências de notícias) pertencentes a diversos órgãos federais. O uso político da máquina informativa estatal foi, finalmente, substituído pelo compromisso com antigas demandas sociais por imparcialidade, pluralidade de pautas e opiniões e diversidade de gênero e raça. Um Conselho Curador composto por membros do Estado e da sociedade foi criado para orientar e fiscalizar a missão pública. Mas, em 2016, o projeto é cancelado. O então presidente Michel Temer dissolve o conselho e impõe um preposto na presidência da Empresa. Na sequência, Bolsonaro entrega o comando a militares da reserva e incorpora a EBC a sua máquina de propaganda. Há apostas de que, apesar das bravatas de privatização, o mandatário prefira contar com a rede na campanha à reeleição.


A jornalista Ana Luiza Fleck Saibro, ex-presidente do Conselho Curador da EBC (2012-2015), defende a retomada urgente do debate sobre mídia pública interrompido em 2016 “para que não se perca os alicerces já construídos de modo participativo”. É fundamental, segundo ela, que se busque sensibilizar maiores parcelas da população sobre a importância da comunicação pública.


Em 2020, Ana Luiza concluiu o curso de Mestrado em Comunicação pela Faculdade Casper Libero com a dissertação “A Empresa Brasil de Comunicação: uma biografia cultural” e conversou com o Caixa Acústica sobre a ousada tentativa brasileira de implantar uma empresa de comunicação pública independente, livre de interesses políticos e comerciais.



A mídia pública no Brasil tem muitos opositores, a começar pela própria mídia comercial, que não vê a necessidade de o Estado investir em um serviço amplamente oferecido pela iniciativa privada. Qual é, na sua opinião, a importância de uma mídia pública no Brasil?

Na realidade atual, é preciso reconhecer que são os meios de comunicação que atribuem significado à realidade e, no limite, conformam nossas identidades. De fato, na sociedade contemporânea nos relacionamos duplamente com o mundo: pela experiência direta dos acontecimentos no cotidiano vivido, e, simultaneamente, pela sua representação que se abre a partir das atrações da cultura de massa. Neste processo, os modos de exposição de determinados assuntos feitos pelos meios de comunicação podem apresentar vieses como a ênfase em certos elementos narrativos ou a subtração de outros. No jornalismo, por exemplo, o enquadramento das notícias, ao apresentarem e reforçarem palavras e imagens que transmitem algumas ideias específicas, mas não outras, tornam algumas ideias mais salientes no texto, outras menos e outras inteiramente invisíveis. Assim, informações podem ser destacadas, omitidas ou suavizadas, de modo a produzirem representações diferentes de uma mesma situação, resultado de narrativas elaboradas a partir de perspectivas moldadas por mecanismos de coerção internos existentes nas redações jornalísticas e pressões comerciais externas.

No Brasil, o espectro da radiodifusão é dominado pelo privado, sem pluralidade de interlocutores e sem a circulação de múltiplos interesses, o que compromete a oferta de pontos de vista alternativos. Um status quo que obstrui a possibilidade de atingir-se as condições indispensáveis para a realização da democratização das comunicações. Em outras palavras, nossa realidade comunicacional não assegura nem o que podemos denominar de diversidade interna (fornecimento de uma programação variada), nem a diversidade externa (escolha entre uma pluralidade de canais).

E aqui reside o fundamento a justificar a existência da comunicação pública: o de abrir o espectro de radiodifusão brasileiro para a manifestação de múltiplas identidades, em um movimento que pode ser chamado de um “florescimento de várias telas”. O modelo institucional da radiodifusão pública possibilita, em todo o mundo, a geração de programação não pautada pela necessidade do faturamento e das ingerências políticas. Essa é a promessa que o sistema de comunicação encabeçado pela EBC se propôs a cumprir. Como gestora de uma estrutura multifacetada de veículos de comunicação, a EBC veio preencher uma lacuna histórica que impôs consequências perversas para o desequilíbrio de nosso ambiente comunicacional: a falta de canais que pudessem acomodar a diversidade de experiências sociais e pontos de vista existentes da sociedade brasileira, na maioria das vezes sub-representados ou mesmo não representados no conteúdo dos meios de comunicação. Neste sentido, a concepção do modelo que prevê a complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal de radiodifusão teve como objetivo estabelecer funções complementares e equilíbrio entre as estruturas de comunicação social, no esforço de corrigir distorções e assentar o princípio do pluralismo no campo da comunicação social em nosso País.



A criação da EBC a partir do entendimento de que mídia pública (voltada para o cidadão) é diferente de mídia estatal (controlada por interesses políticos) contrariou o velho coronelismo eletrônico. Como foi possível esse salto?

A chegada ao poder de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, trouxe grandes expectativas entre movimentos sociais ligados à luta pela democratização das comunicações e intelectuais ligados ao Partido dos Trabalhadores (PT) em relação a possibilidades de alterações no quadro comunicacional do País. Com inspiração no novo momento político, começaram a surgir na agenda movimentos de fomento à produção de conteúdo audiovisual e de debate sobre a questão da comunicação pública.

À mesma época, surgem as primeiras denúncias contra membros do PT e de partidos aliados no que viria a ficar conhecido como o “Escândalo do Mensalão”. Há, entre alguns pesquisadores, embora esta interpretação seja até hoje objeto de indagações acadêmicas, de que a iniciativa de criação da mídia pública seria um caminho para o contraponto à cobertura considerada negativa pelo governo.

De qualquer maneira, não podemos deixar de saudar os movimentos e iniciativas tomadas pelo governo Lula no sentido do debate em torno da comunicação pública. Em 2006, o Ministério da Cultura, sob a direção de Gilberto Gil, convocou representantes das emissoras públicas, educativas e culturais, da sociedade civil e profissionais da cultura, para contribuir com a elaboração de um projeto de sistema de televisão pública no Brasil. A partir dos trabalhos do Fórum Nacional de Televisões Públicas, realizado em maio de 2007, foi elaborada proposta de estruturação do sistema de comunicação pública. Finalmente foi criada a EBC em 2008, após longa e atribulada tramitação da proposta no Congresso Nacional.

Questões como financiamento, autonomia em relação ao governo federal, receio de que a nova empresa pudesse veicular publicidade institucional e assim concorrer com os radiodifusores comerciais pela publicidade governamental, além da forma de indicação dos membros do Conselho Curador, foram as principais polêmicas nas discussões sobre a proposta. Pressões e interesses políticos acabaram por influenciar na redação final do texto aprovado e observou-se um relevante “desvio de rota” da expectativa em torno da construção de uma instituição realmente independente e autônoma. Embora alguns mecanismos e princípios que sinalizavam para a possibilidade da construção de uma comunicação pública relevante tenham sido incluídos na Lei, como a participação da sociedade nos rumos da empresa por meio do Conselho Curador, o modelo organizacional e institucional adotado impediu o seu cumprimento.



Que entraves você aponta na consolidação da EBC como uma empresa de comunicação verdadeiramente pública?

O vício mais grave a minar a trajetória da EBC foi sua vinculação administrativa e política à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (SECOM). Afinal, trata-se do órgão responsável pela comunicação de governo, pela relação do governo com a imprensa e demais instituições de comunicação, entre elas as agências de publicidade que tratam das verbas de propaganda governamentais.

Como decorrência deste arranjo, note-se que entre as competências da EBC, além de gerir os canais públicos, está a de implantar e operar os serviços de radiodifusão do Governo Federal, inclusive para transmissão de atos e matérias institucionais do Governo. Observe-se, portanto, na relação política e administrativa da EBC com a Presidência da República, a circunstância dela ser responsável, pela produção de um canal inteiro de programação do governo, o NBR. Indiscutivelmente, a vinculação ao órgão de publicidade e assessoria de imprensa do governo federal é indesejável à legitimação da EBC como instituição autônoma. Esta opção, acabou por passar uma sinalização dúbia para a sociedade, criando uma empresa que não tem um ‘DNA’ claro, ou que tem dois ‘DNAs’ em sua missão institucional. Não há distinção entre o público e o estatal.

Esta decisão política certamente facilitou a instrumentalização da EBC, não só pelos governos Temer e Bolsonaro, mas também pelos governos anteriores, dos governos progressistas. Não se pode comparar governos e intenções, em termos democráticos, evidentemente, mas também houve uma relação indesejável entre a Secom e a EBC em muitos momentos desde o início. Houve em diversos momentos a nomeação de profissionais da Secom para exercer cargos na EBC e vice-versa, numa verdadeira “dança das cadeiras”, o que já se convencionou chamar, inclusive, de movimento de “portas giratórias”.

Além disso, após o impeachment da Presidente Dilma Roussef, decisões tomadas pelo governo Temer, como a extinção do Conselho Curador, e pelo governo Bolsonaro, especialmente a fusão da TV Brasil, o canal público da EBC, com a NBr, o canal de propaganda institucional do governo, provocaram uma descaracterização ainda mais profunda no caráter público da instituição. Após a transferência da EBC para o Ministério das Comunicações, atualmente também responsável pela comunicação institucional do governo e pelas verbas publicitárias e relações com a imprensa, o governo Bolsonaro acena com a pá de cal a enterrar a comunicação pública no País. A Presidência da República incluiu a EBC no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e sinaliza com a privatização da empresa.



O que fazer? Quais os caminhos para o resgate da comunicação pública no país?

Talvez seja esta a mais difícil pergunta a ser respondida pelos pesquisadores desta área e, ao fim ao cabo, de tantos quantos estão envolvidos com a comunicação pública em nosso País. Mas certamente o caminho passa pela qualificação da democracia. Infelizmente é impossível esperar qualquer iniciativa neste sentido que venha do atual governo, por todo perfil antidemocrático das decisões tomadas não só com relação à EBC, mas de retrocesso e ataque às demais instituições sociais que só pioram a qualidade de nossa democracia.

Por isso mesmo, é preciso estarmos atentos e encontrar formas de evitar a privatização ou a própria extinção da EBC e não colocar por terra anos de luta para a construção da comunicação pública no Brasil. Devemos retomar o debate que foi interrompido em 2016 no governo Temer para não perder os alicerces já construídos de modo participativo, embora reconhecendo a necessidade urgente de sensibilizar maiores parcelas da população sobre a importância da comunicação pública.

Além disso, precisamos rediscutir o modelo jurídico-institucional da EBC começando pela premência da separação entre comunicação estatal e comunicação pública, pela sua autonomia frente aos governos. A EBC é uma empresa pública que deveria ser resultado de uma política de Estado. Um projeto político para ser verdadeiramente público precisa ir além dos grupos que o geraram. O Estado, no contexto brasileiro, é uma esfera que ainda costuma ser confundida com o governo pela sociedade brasileira. Para garantir o caráter público da EBC e tirar as amarras que ainda a vinculam como uma das peças de comunicação do governo é preciso tomar medidas que garantam a autonomia política e editorial da empresa. Em suma, a comunicação pública não pode ficar prisioneira de uma visão transitória e imediatista de quem ocupa o poder.

O serviço público de radiodifusão é mais do que um conjunto de disposições legais e estruturas institucionais. Certos pré-requisitos para sua emergência e sobrevivência devem existir. Estes incluem uma democracia madura e estável, a existência de uma sociedade civil independente e a consciência do que é interesse público, além do reconhecimento sobre a necessidade de uma regulamentação setorial que contemple modelos de comunicação baseados em interesses mais republicanos.

Não obstante os impedimentos estruturais para a concretização dos propósitos contidos nos ideais de uma democracia deliberativa sejam imensos, em algum momento a democracia brasileira terá que se (re)afirmar, superar o atual movimento de ‘desdemocratização’, e tomar decisões fundamentais sobre comunicação.


Ana Luiza Fleck Saibro é jornalista e tradutora, com Mestrado (Masters of Science) em Media and Communications - London School of Economics and Political Science, e Mestrado em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero de São Paulo, além de possuir Especialização em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. É consultora legislativa aposentada do Senado Federal desde julho de 2016. Representou a instituição no Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), durante 8 anos (2008-2016) e exerceu a Presidência do Colegiado durante 4 anos (2012-2015).





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