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Sou kaingang

  • Márcia Detoni
  • 2 de mar. de 2022
  • 3 min de leitura

Atualizado: 3 de mai. de 2023

Entre as boas lembranças que guardo da infância, está uma visita com a família à aldeia indígena de Iraí, a 160 km de Erechim, no Rio Grande do Sul. Fomos na caminhonete Rural Willys de meu pai conhecer aqueles que, na minha casa, eram percebidos de forma romântica: o bom selvagem em harmonia com a natureza. Foi um evento! Meu pai comprou um arco e flecha; minha mãe, um chapéu de tramas coloridas e nós, crianças, ganhamos pequenos pássaros de palha.


Da esquerda para a direita: meu pai e minha mãe; sou a garotinha de cabelos longos na frente, entre meus irmãos Paulo e Kiki

Era início dos anos 1970. O mito do bom selvagem condizia com o que aprendíamos na escola da ditadura militar. No Dia do Índio, 19 de abril (hoje denominado Dia dos Povos Indígenas), fazíamos cocares com penas de galinha e montávamos colares com feijão e milho. Na TV, a propaganda política mostrava crianças brancas, negras, indígenas e orientais brincando de mão dadas numa linda democracia racial.


Não sei o que meu pai pensava dos indígenas. Não falava sobre eles. Aliás, naquela época já eram poucos e só existiam em aldeias distantes. Mas não os chamava de bugres, termo pejorativo usado no Rio Grande do Sul para se referir aos nativos e seus descendentes. Os colonos europeus eram racistas; bugres eram tidos como inferiores, preguiçosos, não aceitavam trabalhar por um prato de comida em terras ancestrais. Meu pai chamava-os de índios e quando viajava a trabalho ao Mato Grosso voltava com muitos colares comprados nas aldeias locais. Os colares nos eram apresentados como verdadeiras joias, e eu circulava orgulhosa pela escola e pela vizinhança com um belo colar de dentes de javali. Dentes de javali!!!


Nunca ouvi falar das agruras dos Kaingang até recentemente. Ensinaram-me na escola que Erechim quer dizer campo pequeno em guarani. Nada mais. Não havia indígenas na escola. Os indígenas que eu “conhecia” e admirava na infância eram os Charrua. Os Charrua do Guaraná Charrua. Havia uma propaganda do refrigerante na TV. Um Charrua valente com lança em punho cavalgava livre pelas campinas. Igualzinho ao rótulo na garrafa.


Filha da ditadura, cresci alienada. Só depois de muito adulta percebi a história varrida para baixo do tapete. Tem contemporâneo meu que ainda não percebeu.


Os colonos europeus trazidos para desenvolver e branquear o país foram assentados em terras indígenas. A mata de araucárias foi derrubada, loteada, cercada, e os Kaingang, retirados a força e concentrados em pequenos núcleos, como Cacique Doble, Votouro, Nonoai, Iraí, Erebango, onde, oprimidos, definharam. As terras onde caçavam e coletavam viraram terras do “Estado”, que as distribui ou vendeu a imigrantes.


Kaingang aldeados. Foto: acervo Museu do índio, década de 1950

O esbulho dos Kaingang do noroeste gaúcho começou por volta de 1800, com o avanço dos bandeirantes paulistas, esses que têm um grande e belo monumento no Parque do Ibirapuera. Apossaram-se das terras; derrubaram os pinhais. Os europeus vieram depois, impondo aos sobreviventes o desprezo social.


Os Kaingang ficaram à margem até a Constituição de 1988, que garantiu aos povos originários o direito à terra. Pouco, no entanto, mudou. Universidades locais desenvolvem projetos em aldeias. Há uma ação da Funai aqui. Outra ali. Mas há problemas de moradia, saneamento básico, saúde e educação.


Leio notícias de que alguns, vez ou outra, importunam moradores ao acampar perto da rodoviária de Erechim. Tentam vender artesanato fora das áreas designadas, crianças mendigam nos semáforos e nas ruas. Minha mãe contou-me que, outro dia, numa viagem de carro até Passo Fundo, ficou parada na estrada. Os Kaingang fecharam a BR 153. Protestavam contra o marco temporal, tese em discussão no STF para restringir a demarcação de terras indígenas apenas às áreas que estavam sob posse comprovada dos nativos em 1988. Querem limitá-los ao pequeno roçado e à produção de cestaria. A ideia continua a mesma: forçar os sobreviventes ao aculturamento; que mendiguem, mas não protestem.


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